O Cosmos é a obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. Tudo é uma grande liturgia cósmica. A adoração nos leva a apalpar o passo de Deus por meio do Universo. Corresponde a nós captar e celebrar essa grande festa cósmica.."
Essa é a opinião de Manuel Gonzalo, em artigo publicado no número coletivo de 13 revistas teológicas da América Latina sobre ecologia, por iniciativa da Comissão Teológica Latino-Americana da Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (Asett). O número também reúne artigos de Leonardo Boff, Faustino Texeira, Giannino Piana e Luis Diego Cascante, além de José Maria Vigil, coordenador da Comissão Teológica.
O texto foi publicado na revista Adista, 29-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O caminhar entre a ciência e a religião foi tenso durante vários séculos. As duas foram por caminhos separados, e a agudização de posturas por ambas as partes fez mal ao próprio ser humano. Por um lado, caminharam os dados concretos sobre a realidade do mundo, e, por outro, as explicações sobre a relação do existente com Deus. Por sua vez, a Terra pagou fortemente os efeitos dessas tensões. (...)
A ciência (...) tenta explicar como funcionam as coisas, mas não está capacitada a dar um sentido a elas. A religião se preocupa mais do sentido, mas não está capacitada a analisar como os fatos ocorrem. De todas as formas, ambas são realizadas pelo ser humano e são expressão de sua busca fundamental: encontrar um sentido a sua estada neste planeta e produzir uma resposta positiva tanto para a convivência, quanto para o tipo de relação que mantém com o planeta. (...)
Traços do universo
Cada vez é maior o consenso na comunidade científica sobre traços que aparecem nesta história do Universo. Dentre eles, vou assinalar 13 que considero mais significativos.
1. Um primeiro traço, ao que se chegou com as contribuições do astrônomo Hubble e sua constatação do deslocamento para o vermelho do espectro luminoso das galáxias, é o da expansão do Universo. Esse dado, originado no começo dos anos 30, revolucionou a compreensão estática que se tinha do universo. Anos depois, ia tomando forma a teoria do Big Bang que expressa como, há cerca de 15 bilhões de anos, o Universo começou como uma grande explosão. (...) Então surgiram tanto o espaço, quanto o tempo. Desde esse começo, pode-se falar da história do Universo. Expansão e esfriamento são duas características dele.
2. Também se trata de um Universo que foi se abrindo, revelando, à medida em que o tempo ia passando. Uma boa imagem para entendê-lo seria observar pela primeira vez o nascimento de uma flor. Não se sabe dela até que, por fim, ela desenvolveu todas as suas pétalas, sépalos, aparelho reprodutor e de mais partes. Trata-se de um processo que causaria admiração diante das novidades que iriam aparecendo. Para fazer outra analogia, hoje se poderia falar do Universo como de um embrião.
3. Outro traço do Universo é a criatividade desenvolvida. O processo foi lento, mas contínuo. Primeiro foi a energia, depois a matéria, depois elementos como o hidrogênio e o hélio, as estrelas e as galáxias, depois a explosão das estrelas supernovas capazes de produzir os elementos mais pesados da tabela periódica, depois o Sol e a Terra, depois a vida. O Universo manifestou uma criatividade transbordante. Cada evento ocorreu em seu momento. Tratam-se de processos irreversíveis.
4. Também aparece o traço do crescimento da complexidade. Sabemos que uma ameba é menos complexa do que um caracol. Pode-se afirmar que ela possui menos informação. (...) Estamos imersos na complexidade cósmica. A tendência à complexidade aparece desde o começo, desde as partículas elementares e o valor das quatro forças fundamentais (a gravitação, a eletromagnética, a nuclear forte e a nuclear fraca). Se entendermos a complexidade como a capacidade para "surpreender" o observador, não seria de se estranhar que vivêssemos com a boca aberta diante de tudo o que nos rodeia.
5. Outro traço é a aparição de propriedades emergentes. Aqui, cumpre-se o ditado de que "o todo é maior do que a soma das partes". Por exemplo, um elétron e um próton separados não é a mesma coisa que ambos relacionados e dando lugar ao átomo de hidrogênio. O hidrogênio e o oxigênio separados também não têm as mesmas propriedades que ambos combinados produzindo a molécula da água. E se analisarmos a aparição da vida, vemos que as moléculas não têm vida, mas juntas em diferentes estruturas geram algo que é capaz de se reproduzir, de se alimentar, de interagir com o meio ambiente e de ter autonomia. Surge algo com coerência de comportamento desde componentes que apresentam uma incoerência inicial.
6. O Universo apresenta outro traço, ao qual Teilhard de Chardin foi muito sensível: foi-se produzindo um crescimento da consciência. Na vida animal, o sistema nervoso aparece em um processo de complexificação desde as bactérias, passando pelos invertebrados, incrementando-se nos mamíferos e chegando à sua máxima expressão no cérebro humano. Trata-se de um Universo que se tornou reflexivo. Ernesto Cardenal se questionará: "Que Prêmio Nobel nos explicará por que estamos em um Universo que aprendeu a pensar?".
7. Os humanos se encontram entre dois grandes infinitos: o infinitamente grande – o Cosmos, as galáxias, as estrelas, o sistema solar – e o infinitamente pequeno – os quarks, prótons, elétrons, nêutrons, fótons, neutrinos, átomos, moléculas. A vida emerge como uma frutífera interação entre esses dois infinitos. Por sua vez, irá produzir um novo infinito: o infinitamente complexo – como o cérebro humanos e os ecossistemas.
8. A Demócrito é atribuída a sentença: "tudo chega por azar e por necessidade". O caminhar do Universo é entendido por muitos como uma combinação de azar e de necessidade. No azar, assume-se aquilo que houve de aleatório, de jogo, de oportunidade, de ocasião, de casualidade durante os 15 bilhões de anos. Dentro da Teoria do Caos, lembra-se como um fenômeno mínimo pode ter repercussões enormes, como o bater de asas de uma borboleta que gerasse um furacão que se manifestaria a milhares de quilômetros. Há uma amplificação dos fenômenos. Por isso, não se pode predizer exatamente o porvir. A partir desses enfoques, estamos longe do mecanicismo fixista de séculos anteriores. Na necessidade, em troca, compreende-se o cumprimento das leis físicas, isto é, o curso imposto pelo valor que as quatro forças fundamentais tomaram desde o primeiro milissegundo que se seguiu à Grande Explosão. O Universo manifesta sua invectiva por meio do azar e da necessidade.
9. Outro traço é constatar como aparece uma longa quantidade de muitas casualidades. No Universo, não foi possível um passo posterior sem que fossem dado os anteriores. O próprio físico Stephen Hawking mostra que qualquer mudança mínima que houvesse ocorrido no valor atual das quatro forças fundamentais teria impedido o fato de estarmos aqui como seres humanos povoadores do planeta Terra. Outro tanto teria ocorrido se tivessem sido diferentes tanto a velocidade de expansão do Universo, quanto a distância entre o Sol e a Terra, assim como o raio da Terra. (...) Para a evolução dos humanoides, foi positiva a falha que apareceu no leste da África que percorre o Egito até a Tanzânia. Ao leste da falha, devido à seca, a floresta se converteu em savana, fazendo com que os símios superiores se vissem obrigados a descer das árvores.
10. Analisamos a história do universo "a posteriori". A partir da nossa inteligência, seguimos a pista aos passos gerais que permitiram o surgimento da inteligência. Do chamado Princípio Antrópico, afirma-se que todo o longo caminhar desde o Big Bang permitiu a aparição do ser humano. E. Barrow expressa que "não é só que o ser humano esteja adaptado ao Universo. O Universo está adaptado ao ser humano". Há uma mudança de enfoque. Aqui, a vida humana não aparece como um processo caótico marcado por sobressaltos improváveis. Pelo contrário, se entenderá que o Universo "desejava" a aparição do humano. "Era preciso que a vida e o pensamento estivessem inscritos nas potencialidades do Universo primitivo" (Hubert Reeves, astrofísico). Reeves também afirma: "As propriedades da matéria são exatamente as que asseguram a fertilidade do Cosmos e a aparição da consciência".
11. O que ocorre em cada momento? Há um leque de possibilidades pela frente. O Universo joga, mas manifestou que sabe jogar muito bem. Soube tirar vantagem, por exemplo, tanto da mínima quantidade de matéria maior do que a antimatéria – fenômeno que ocorreu antes do primeiro milissegundo – como da aparição das circunvoluções cerebrais. A evolução do Universo aparece como uma atualização progressiva de suas potencialidades. Hubert Reeves afirma que a matéria, "empurrada pelo que poderíamos chamar de um poderoso fermento cósmico, tende a alcançar estados mais e mais estruturados".
12. Outro traço no processo de crescimento da diversidade de formas de vida é a relação que existe entre tudo. Nenhuma espécie é autossuficiente. Todas são interdependentes. Além de se dar uma relação entre as grandes redes de seres vivos, também existe outra entre as formas vivas com as não vivas. Oceanos, atmosfera, composição de solos, temperatura, tudo está relacionado como um grande tecido que faz da Terra um planeta excepcional com vida. (...)
13. Na hipótese chamada Gaia, proposta por Loveloch, propõe-se uma aproximação ao planeta Terra considerando-o como um ser vivo. Aparece o planeta como um sistema automantido, que manifestou sua capacidade de autoequilíbrio.
Todos esses traços expressam como a comunidade científica está tendo uma aproximação diferente não só com relação ao planeta Terra, mas também à vida, às coisas, ao ser humano. Longe de se fechar só em explicações científicas, cada vez gera mais interrogantes metafísicos.
(...) É necessário assumir a mudança na visão do cosmos que a ciência moderna apresenta e refletir a partir daí sobre Deus. Nossa imagem de Deus também está em "expansão". A cosmologia moderna exige uma teologia atualizada. Essa mudança já está levando a um desenvolvimento das capacidades de admiração e escuta frente ao Universo, a atitudes mais contemplativas, a responsabilidades novas para com o planeta e a vida nele, à compreensão de um Deus dinâmico que ama o mundo. É tarefa pendente construir uma nova espiritualidade mais conforme à nova visão do cosmos.
Rumo à revolução ecológica
Nadamos na complexidade. Dito de outra forma, nadamos no mistério. Das mudanças apresentadas na ciência e nas religiões, está se abrindo o horizonte de compreensão desta época. Fazemos parte da revolução cibernética que é continuadora da revolução tecnológica. Esta substituiu a revolução agrária. Hoje, as portas vão lentamente se abrindo à revolução ecológica.
Nada do que acontece na imensidão do Cosmos nos é indiferente. (...) Tudo está interconectado. Para descobrir por que um ser está vivo é necessário olhar muito longe.
Como animais conscientes, somos o universo que entende a si mesmo. O poeta Ernesto Cardenal nos ajuda a entender, em seu Cântico Cósmico, que ao olhar as estrelas somo hidrogênio contemplando hidrogênio.
Essa revolução ecológica exige uma mudança de mentalidade ao Cosmos. Que novas atitudes são necessárias para essa mudança? Gostaria de assinalar cinco que me parecem chaves:
1. Respeito. (...) Respeitaremos a Terra se a entendermos como um sistema esgotável que é preciso manter e aprendermos a consumir menos, a reutilizar mais e a reciclar ao máximo.
2. Veneração. A ciência está nos ajudando a descobrir como tudo é grande e complexo. Nada é simples, vulgar, sem valor. Uma folha de árvores possui muita sabedoria. (...) A veneração nos leva a caminhar pela Terra "tirando-nos as sandálias", como Moisés diante da sarça ardente (Ex 3, 2). Uma pedra, um riachinho, uma nuvem caprichosa, um pássaro convertem-se em veículos de sabedoria. É necessário que nos eduquemos para captar a mensagem que eles nos transmitem e aprender a desfrutar tudo o que nos rodeia. Todo o Cosmos é como um grande livro que precisa ser lido.
3. Comunhão. (...) Se entendêssemos bem o que implica a história do Universo, descobriríamos que, nas estrelas, somos irmãos de tudo. A diversidade e a variação presentes em nosso universo atual estiveram juntas e não diferenciadas no momento do Big Bang. Ao abrirmo-nos à noite estrelada, abrimo-nos ao nosso passado. Podemos sentir como os átomos que fazem parte hoje do nosso corpo surgiram da explosão de uma supernova. O Universo nos gerou no calor das estrelas que morreram para produzir átomos mais pesados necessários para que a vida aparecesse. Sem a explosão das estrelas supernovas, não teria havido vida posteriormente. Cada um de nós está aparentado com tudo. Por sua vez, aquilo que aconteceu nas savanas africanas há cerca de quatro milhões de anos é a recordação próxima da nossa irmandade como espécie humana. (...)
4. Adoração. (...) As religiões, há muito tempo, captaram essa relação de tudo com Deus. Longe de fazer parte da "leveza do real", fazemos parte da "densidade do real", do sagrado que é tudo. Como já afirmava São Paulo: "Tudo foi criado por Ele e para Ele" (Col 1, 16). Teilhard falou da "santa matéria". O Cosmos é a obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. (...) Tudo é uma grande liturgia cósmica. A adoração nos leva a apalpar o passo de Deus por meio do Universo. Corresponde a nós captar e celebrar essa grande festa cósmica.
5. Nova identidade. (...) Já não se trata unicamente de conseguir uma identidade a partir da própria família, nem a partir do grupo cultural ao qual se pertence. A história do Universo se revela como parte da nossa própria história, da nossa própria identidade. Não é que tenhamos em nossas vidas 20, 40 ou 70 anos. Cada um de nós tem 15 bilhões de anos. Viemos de muito longe. Estamos orgulhosos de saber de nossas origens.
(...) O fato de conhecer e assimilar essa perspectiva nos faz ver que a nossa existência é preciosa. Como afirma H. Reeves: "levamos o fermento cósmico em nós mesmos. Ele nos incita a promover a maravilhosa odisseia da complexidade cósmica". (...)
No planeta, existem muitas injustiças. Hoje, o progresso é imenso, mas profundamente desumano. (...) Em troca, a nova identidade buscada não só ancora profundamente as nossas raízes no passado, mas também se projeta ao futuro. Lança-nos em uma tarefa responsável para com a Terra e a vida. É um chamado a responder diante dos dois grandes sujeitos que sofrem opressão humana hoje: os pobres da Terra e a própria Terra. É o chamado à ação a partir do "grito dos pobres e o grito da Terra" (L. Boff).
Contribuições entre cristianismo e ecologia
(...) No cristianismo, herdamos o gosto pelo novo. Jesus esteve aberto a novos desafios e convidou seus seguidores a interpretar os sinais dos tempos. Sem dúvida nenhuma, hoje, na consciência ecológica, o Espírito de Deus está soprando. É um convite a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e a levar a sério a responsabilidade que temos sobre a criação.
Hoje, a revolução ecológica é, por sua vez, uma revolução cultural. Convida a entender uma nova localização do ser humano na Terra. Exige novas compreensões e novas respostas. (...)
A ecologia se converte, por sua vez, em uma aventura espiritual. Podemos ir construindo uma espiritualidade ecológica que nos ensine a abraçar o Cosmos e o Deus do Cosmos. Nosso caminhar como cristão pode se ver profundamente enriquecido a partir desse desafio. A resposta, mais uma vez, está em nós.
Fonte: http://http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=31161
O texto foi publicado na revista Adista, 29-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O caminhar entre a ciência e a religião foi tenso durante vários séculos. As duas foram por caminhos separados, e a agudização de posturas por ambas as partes fez mal ao próprio ser humano. Por um lado, caminharam os dados concretos sobre a realidade do mundo, e, por outro, as explicações sobre a relação do existente com Deus. Por sua vez, a Terra pagou fortemente os efeitos dessas tensões. (...)
A ciência (...) tenta explicar como funcionam as coisas, mas não está capacitada a dar um sentido a elas. A religião se preocupa mais do sentido, mas não está capacitada a analisar como os fatos ocorrem. De todas as formas, ambas são realizadas pelo ser humano e são expressão de sua busca fundamental: encontrar um sentido a sua estada neste planeta e produzir uma resposta positiva tanto para a convivência, quanto para o tipo de relação que mantém com o planeta. (...)
Traços do universo
Cada vez é maior o consenso na comunidade científica sobre traços que aparecem nesta história do Universo. Dentre eles, vou assinalar 13 que considero mais significativos.
1. Um primeiro traço, ao que se chegou com as contribuições do astrônomo Hubble e sua constatação do deslocamento para o vermelho do espectro luminoso das galáxias, é o da expansão do Universo. Esse dado, originado no começo dos anos 30, revolucionou a compreensão estática que se tinha do universo. Anos depois, ia tomando forma a teoria do Big Bang que expressa como, há cerca de 15 bilhões de anos, o Universo começou como uma grande explosão. (...) Então surgiram tanto o espaço, quanto o tempo. Desde esse começo, pode-se falar da história do Universo. Expansão e esfriamento são duas características dele.
2. Também se trata de um Universo que foi se abrindo, revelando, à medida em que o tempo ia passando. Uma boa imagem para entendê-lo seria observar pela primeira vez o nascimento de uma flor. Não se sabe dela até que, por fim, ela desenvolveu todas as suas pétalas, sépalos, aparelho reprodutor e de mais partes. Trata-se de um processo que causaria admiração diante das novidades que iriam aparecendo. Para fazer outra analogia, hoje se poderia falar do Universo como de um embrião.
3. Outro traço do Universo é a criatividade desenvolvida. O processo foi lento, mas contínuo. Primeiro foi a energia, depois a matéria, depois elementos como o hidrogênio e o hélio, as estrelas e as galáxias, depois a explosão das estrelas supernovas capazes de produzir os elementos mais pesados da tabela periódica, depois o Sol e a Terra, depois a vida. O Universo manifestou uma criatividade transbordante. Cada evento ocorreu em seu momento. Tratam-se de processos irreversíveis.
4. Também aparece o traço do crescimento da complexidade. Sabemos que uma ameba é menos complexa do que um caracol. Pode-se afirmar que ela possui menos informação. (...) Estamos imersos na complexidade cósmica. A tendência à complexidade aparece desde o começo, desde as partículas elementares e o valor das quatro forças fundamentais (a gravitação, a eletromagnética, a nuclear forte e a nuclear fraca). Se entendermos a complexidade como a capacidade para "surpreender" o observador, não seria de se estranhar que vivêssemos com a boca aberta diante de tudo o que nos rodeia.
5. Outro traço é a aparição de propriedades emergentes. Aqui, cumpre-se o ditado de que "o todo é maior do que a soma das partes". Por exemplo, um elétron e um próton separados não é a mesma coisa que ambos relacionados e dando lugar ao átomo de hidrogênio. O hidrogênio e o oxigênio separados também não têm as mesmas propriedades que ambos combinados produzindo a molécula da água. E se analisarmos a aparição da vida, vemos que as moléculas não têm vida, mas juntas em diferentes estruturas geram algo que é capaz de se reproduzir, de se alimentar, de interagir com o meio ambiente e de ter autonomia. Surge algo com coerência de comportamento desde componentes que apresentam uma incoerência inicial.
6. O Universo apresenta outro traço, ao qual Teilhard de Chardin foi muito sensível: foi-se produzindo um crescimento da consciência. Na vida animal, o sistema nervoso aparece em um processo de complexificação desde as bactérias, passando pelos invertebrados, incrementando-se nos mamíferos e chegando à sua máxima expressão no cérebro humano. Trata-se de um Universo que se tornou reflexivo. Ernesto Cardenal se questionará: "Que Prêmio Nobel nos explicará por que estamos em um Universo que aprendeu a pensar?".
7. Os humanos se encontram entre dois grandes infinitos: o infinitamente grande – o Cosmos, as galáxias, as estrelas, o sistema solar – e o infinitamente pequeno – os quarks, prótons, elétrons, nêutrons, fótons, neutrinos, átomos, moléculas. A vida emerge como uma frutífera interação entre esses dois infinitos. Por sua vez, irá produzir um novo infinito: o infinitamente complexo – como o cérebro humanos e os ecossistemas.
8. A Demócrito é atribuída a sentença: "tudo chega por azar e por necessidade". O caminhar do Universo é entendido por muitos como uma combinação de azar e de necessidade. No azar, assume-se aquilo que houve de aleatório, de jogo, de oportunidade, de ocasião, de casualidade durante os 15 bilhões de anos. Dentro da Teoria do Caos, lembra-se como um fenômeno mínimo pode ter repercussões enormes, como o bater de asas de uma borboleta que gerasse um furacão que se manifestaria a milhares de quilômetros. Há uma amplificação dos fenômenos. Por isso, não se pode predizer exatamente o porvir. A partir desses enfoques, estamos longe do mecanicismo fixista de séculos anteriores. Na necessidade, em troca, compreende-se o cumprimento das leis físicas, isto é, o curso imposto pelo valor que as quatro forças fundamentais tomaram desde o primeiro milissegundo que se seguiu à Grande Explosão. O Universo manifesta sua invectiva por meio do azar e da necessidade.
9. Outro traço é constatar como aparece uma longa quantidade de muitas casualidades. No Universo, não foi possível um passo posterior sem que fossem dado os anteriores. O próprio físico Stephen Hawking mostra que qualquer mudança mínima que houvesse ocorrido no valor atual das quatro forças fundamentais teria impedido o fato de estarmos aqui como seres humanos povoadores do planeta Terra. Outro tanto teria ocorrido se tivessem sido diferentes tanto a velocidade de expansão do Universo, quanto a distância entre o Sol e a Terra, assim como o raio da Terra. (...) Para a evolução dos humanoides, foi positiva a falha que apareceu no leste da África que percorre o Egito até a Tanzânia. Ao leste da falha, devido à seca, a floresta se converteu em savana, fazendo com que os símios superiores se vissem obrigados a descer das árvores.
10. Analisamos a história do universo "a posteriori". A partir da nossa inteligência, seguimos a pista aos passos gerais que permitiram o surgimento da inteligência. Do chamado Princípio Antrópico, afirma-se que todo o longo caminhar desde o Big Bang permitiu a aparição do ser humano. E. Barrow expressa que "não é só que o ser humano esteja adaptado ao Universo. O Universo está adaptado ao ser humano". Há uma mudança de enfoque. Aqui, a vida humana não aparece como um processo caótico marcado por sobressaltos improváveis. Pelo contrário, se entenderá que o Universo "desejava" a aparição do humano. "Era preciso que a vida e o pensamento estivessem inscritos nas potencialidades do Universo primitivo" (Hubert Reeves, astrofísico). Reeves também afirma: "As propriedades da matéria são exatamente as que asseguram a fertilidade do Cosmos e a aparição da consciência".
11. O que ocorre em cada momento? Há um leque de possibilidades pela frente. O Universo joga, mas manifestou que sabe jogar muito bem. Soube tirar vantagem, por exemplo, tanto da mínima quantidade de matéria maior do que a antimatéria – fenômeno que ocorreu antes do primeiro milissegundo – como da aparição das circunvoluções cerebrais. A evolução do Universo aparece como uma atualização progressiva de suas potencialidades. Hubert Reeves afirma que a matéria, "empurrada pelo que poderíamos chamar de um poderoso fermento cósmico, tende a alcançar estados mais e mais estruturados".
12. Outro traço no processo de crescimento da diversidade de formas de vida é a relação que existe entre tudo. Nenhuma espécie é autossuficiente. Todas são interdependentes. Além de se dar uma relação entre as grandes redes de seres vivos, também existe outra entre as formas vivas com as não vivas. Oceanos, atmosfera, composição de solos, temperatura, tudo está relacionado como um grande tecido que faz da Terra um planeta excepcional com vida. (...)
13. Na hipótese chamada Gaia, proposta por Loveloch, propõe-se uma aproximação ao planeta Terra considerando-o como um ser vivo. Aparece o planeta como um sistema automantido, que manifestou sua capacidade de autoequilíbrio.
Todos esses traços expressam como a comunidade científica está tendo uma aproximação diferente não só com relação ao planeta Terra, mas também à vida, às coisas, ao ser humano. Longe de se fechar só em explicações científicas, cada vez gera mais interrogantes metafísicos.
(...) É necessário assumir a mudança na visão do cosmos que a ciência moderna apresenta e refletir a partir daí sobre Deus. Nossa imagem de Deus também está em "expansão". A cosmologia moderna exige uma teologia atualizada. Essa mudança já está levando a um desenvolvimento das capacidades de admiração e escuta frente ao Universo, a atitudes mais contemplativas, a responsabilidades novas para com o planeta e a vida nele, à compreensão de um Deus dinâmico que ama o mundo. É tarefa pendente construir uma nova espiritualidade mais conforme à nova visão do cosmos.
Rumo à revolução ecológica
Nadamos na complexidade. Dito de outra forma, nadamos no mistério. Das mudanças apresentadas na ciência e nas religiões, está se abrindo o horizonte de compreensão desta época. Fazemos parte da revolução cibernética que é continuadora da revolução tecnológica. Esta substituiu a revolução agrária. Hoje, as portas vão lentamente se abrindo à revolução ecológica.
Nada do que acontece na imensidão do Cosmos nos é indiferente. (...) Tudo está interconectado. Para descobrir por que um ser está vivo é necessário olhar muito longe.
Como animais conscientes, somos o universo que entende a si mesmo. O poeta Ernesto Cardenal nos ajuda a entender, em seu Cântico Cósmico, que ao olhar as estrelas somo hidrogênio contemplando hidrogênio.
Essa revolução ecológica exige uma mudança de mentalidade ao Cosmos. Que novas atitudes são necessárias para essa mudança? Gostaria de assinalar cinco que me parecem chaves:
1. Respeito. (...) Respeitaremos a Terra se a entendermos como um sistema esgotável que é preciso manter e aprendermos a consumir menos, a reutilizar mais e a reciclar ao máximo.
2. Veneração. A ciência está nos ajudando a descobrir como tudo é grande e complexo. Nada é simples, vulgar, sem valor. Uma folha de árvores possui muita sabedoria. (...) A veneração nos leva a caminhar pela Terra "tirando-nos as sandálias", como Moisés diante da sarça ardente (Ex 3, 2). Uma pedra, um riachinho, uma nuvem caprichosa, um pássaro convertem-se em veículos de sabedoria. É necessário que nos eduquemos para captar a mensagem que eles nos transmitem e aprender a desfrutar tudo o que nos rodeia. Todo o Cosmos é como um grande livro que precisa ser lido.
3. Comunhão. (...) Se entendêssemos bem o que implica a história do Universo, descobriríamos que, nas estrelas, somos irmãos de tudo. A diversidade e a variação presentes em nosso universo atual estiveram juntas e não diferenciadas no momento do Big Bang. Ao abrirmo-nos à noite estrelada, abrimo-nos ao nosso passado. Podemos sentir como os átomos que fazem parte hoje do nosso corpo surgiram da explosão de uma supernova. O Universo nos gerou no calor das estrelas que morreram para produzir átomos mais pesados necessários para que a vida aparecesse. Sem a explosão das estrelas supernovas, não teria havido vida posteriormente. Cada um de nós está aparentado com tudo. Por sua vez, aquilo que aconteceu nas savanas africanas há cerca de quatro milhões de anos é a recordação próxima da nossa irmandade como espécie humana. (...)
4. Adoração. (...) As religiões, há muito tempo, captaram essa relação de tudo com Deus. Longe de fazer parte da "leveza do real", fazemos parte da "densidade do real", do sagrado que é tudo. Como já afirmava São Paulo: "Tudo foi criado por Ele e para Ele" (Col 1, 16). Teilhard falou da "santa matéria". O Cosmos é a obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. (...) Tudo é uma grande liturgia cósmica. A adoração nos leva a apalpar o passo de Deus por meio do Universo. Corresponde a nós captar e celebrar essa grande festa cósmica.
5. Nova identidade. (...) Já não se trata unicamente de conseguir uma identidade a partir da própria família, nem a partir do grupo cultural ao qual se pertence. A história do Universo se revela como parte da nossa própria história, da nossa própria identidade. Não é que tenhamos em nossas vidas 20, 40 ou 70 anos. Cada um de nós tem 15 bilhões de anos. Viemos de muito longe. Estamos orgulhosos de saber de nossas origens.
(...) O fato de conhecer e assimilar essa perspectiva nos faz ver que a nossa existência é preciosa. Como afirma H. Reeves: "levamos o fermento cósmico em nós mesmos. Ele nos incita a promover a maravilhosa odisseia da complexidade cósmica". (...)
No planeta, existem muitas injustiças. Hoje, o progresso é imenso, mas profundamente desumano. (...) Em troca, a nova identidade buscada não só ancora profundamente as nossas raízes no passado, mas também se projeta ao futuro. Lança-nos em uma tarefa responsável para com a Terra e a vida. É um chamado a responder diante dos dois grandes sujeitos que sofrem opressão humana hoje: os pobres da Terra e a própria Terra. É o chamado à ação a partir do "grito dos pobres e o grito da Terra" (L. Boff).
Contribuições entre cristianismo e ecologia
(...) No cristianismo, herdamos o gosto pelo novo. Jesus esteve aberto a novos desafios e convidou seus seguidores a interpretar os sinais dos tempos. Sem dúvida nenhuma, hoje, na consciência ecológica, o Espírito de Deus está soprando. É um convite a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e a levar a sério a responsabilidade que temos sobre a criação.
Hoje, a revolução ecológica é, por sua vez, uma revolução cultural. Convida a entender uma nova localização do ser humano na Terra. Exige novas compreensões e novas respostas. (...)
A ecologia se converte, por sua vez, em uma aventura espiritual. Podemos ir construindo uma espiritualidade ecológica que nos ensine a abraçar o Cosmos e o Deus do Cosmos. Nosso caminhar como cristão pode se ver profundamente enriquecido a partir desse desafio. A resposta, mais uma vez, está em nós.
Fonte: http://http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=31161
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