domingo, 18 de julho de 2010

O seu garfo

Como deveria ser a bandeira espanhola

O HOMEM EVOLUIU COMO UM ANIMAL CARNIVORO OU VEGETARIANO?

O HOMEM EVOLUIU COMO UM ANIMAL CARNIVORO OU VEGETARIANO?

Sérgio Greif

Junho de 2010

É comum, atualmente, que no debate entre consumidores de carne e vegetarianos sejam utilizados argumentos relacionados aos "homens das cavernas", uns argumentando que os homens evoluíram como carnívoros e outros argumentando que evoluíram como vegetarianos. O presente texto traz considerações com relação a esse assunto. Conforme a teoria evolutiva corrente, por volta de 6 e 7 milhões de anos atrás viveu nas florestas africanas um antepassado do homem do tamanho de um chimpanzé, denominado Orrorin tugenensis. Esse proto-homem passava a maior parte do tempo nas árvores, em busca de seu alimento (frutas e folhas), mas as vezes descia ao solo. A presença de grandes molares e de pequenos caninos sugere que esses hominídeos tinham uma dieta baseada em vegetais, mas podemos inferir que, eventualmente, insetos e pequenos vertebrados também fizessem parte de sua dieta, à semelhança do que ocorre entre os chimpanzés.

Por volta de 4 milhões de anos atrás, o aquecimento global (que já existia nessa época) reduziu grande parte das florestas africanas a savanas, e isso levou os antepassados do homem a buscar novas adaptações. O espaçamento entre as árvores e a necessidade de percorrer grandes distâncias para encontrar seu alimento levou a um maior desenvolvimento do bipedalismo (capacidade de andar em duas pernas). Surgia então o gênero Australopithecus, com representantes com pouco mais de 1 metro de altura, cérebro pequeno e rosto largo, cujos representantes mais conhecidos foram o A. afarensis e o A. africanus.

Devido às condições de seu ambiente e às suas limitações físicas, esses hominídeos encontravam grande dificuldade em encontrar boas condições para sua subsistência. As frutas já não eram tão abundantes como na floresta, e o capim, que agora abundava nas savanas, não era digerível. Também para obter outros tipos de alimentos eles tinham grande dificuldade, visto que esses hominídeos não eram bem adaptados à caça. Eles não eram rápidos o suficiente para alcançar uma gazela na corrida, nem tinham garras, presas ou força suficiente para abatê-las.

Por isso, a maior parte do tempo, esses hominídeos passava forrageando, se deslocando em busca de folhas, raízes e frutos que conseguisse digerir. Eventualmente, quando encontrava um animal doente ou já morto ele consumia a carne com voracidade, pois carne significava uma grande quantidade de calorias e nutrientes concentrados, em um mundo onde não se sabia quando seria a próxima refeição.

Onivoria, quando não se tem controle sobre o meio ambiente, é uma vantagem evolutiva, porque permite que se coma qualquer coisa e não se morra de fome.

Por volta de 2 milhões de anos atrás, a competição por recursos nas savanas africanas havia aumentado bastante. As florestas eram ainda menos abundantes e nas savanas proliferava uma fauna de grandes herbívoros pastadores; os grandes predadores eram mais eficientes no abate de presas e mesmo as carcaças por eles abandonadas precisavam ser disputadas com hienas e abutres.

O homem precisou então criar novas estratégias evolutivas: Ele precisaria se tornar tão bom pastador quanto os outros pastadores ou tão bom predador quanto os outros predadores. Ou seja, precisava se tornar competitivo.

O caminho adotado foi o da 'irradiação', da 'diversificação adaptativa'. Nesse período surgiram várias espécies de hominídeos, das quais conhecemos pelo menos 5 espécies. Um grupo de hominídeos, o gênero Paranthropus, optou por se especializar na alimentação à base de vegetais fibrosos e pouco nutritivos, por isso desenvolveu um corpo robusto, com mandíbulas pesadas, molares bem achatados e um trato digestivo que permitia o consumo de grande quantidade de alimentos. Essas adaptações permitiam que esse hominídeo processasse alimentos como o capim e as cascas de árvores. É provável que esses hominídeos fossem estritamente vegetarianos, o que não demandava a fabricação de instrumentos ou a elaboração de estratégias de caça. O Paranthropus tinha o corpo robusto, mas o cérebro era pequeno, e o ambiente era extremamente favorável ao seu estilo de vida.

Por essa mesma época surgiam nas savanas outros grupos de homens, hoje reconhecidos como a transição entre os Australopithecus e o que já reconhecemos como os primeiros homens pertencentes ao gênero Homo. Eles eram a princípio necrófagos que seguiam os grandes predadores em busca das carcaças abandonadas, mas com o tempo desenvolveram técnicas para abater suas próprias presas. Esse gênero, que não podia digerir capim e cascas de árvore, especializou-se na caça de animais, consumindo também, sempre que disponível, vegetais mais nutritivos. Suas principais adaptações foram o desenvolvimento de ferramentas de pedra cada vez mais elaboradas, de um sistema de comunicação mais articulado e, um milhão de anos após, no domínio do fogo.

Esses hominídeos, para desenvolverem sua capacidade de cognição (crescimento do cérebro) precisaram tirar a energia de outros órgãos. Considerando que a maior parte da energia corpórea era gasta para manter o trato digestivo e que o tipo de alimentação adotado se consistia em sua maior parte de alimentos calóricos com nutrientes concentrados, os intestinos desse homem diminuiu, à medida que seu cérebro aumentava.

Nesse período em que os dois gêneros (os Paranthropus vegetarianos e a os Homo onívoros) coexistiram, o vegetarianismo, ou herbivoria, apresentou-se como uma vantagem. Pode-se imaginar que o Paranthropus levasse uma vida tranqüila, vivendo em vales verdes abundantes em seus alimentos, sem se arriscar em caçadas ou competir com outros predadores; As espécies do gênero Homo, por outro lado, encontravam-se sempre no limiar da sobrevivência, quase minguando de fome, arriscando-se em caçadas e precisando deslocar-se por grandes extensões de terra para encontrar seu alimento.

Novas mudanças climáticas posteriores diminuíram as extensões dos pastos, e as áreas verdejantes, em sua grande parte, deixaram de existir. Os Paranthropus definharam. O gênero Homo, mais acostumado aos deslocamentos sucessivos e à falta de segurança alimentar sobreviveu. Somos descendentes desses homens.

Ao contrário do que se acredita, a paleoantropologia não defende uma sucessão linear, onde o Homo habilis tenha dado origem ao Homo rudolfensis e ao Homo ergaster, e que desse tenha surgido o Homo erectus, o Homo heidelbergensis que deu origem ao Homo neardentalis e ao Homo sapiens, espécie à qual pertencemos. A evolução de todas essas espécies aconteceu a partir de ancestrais comuns, muitos deles ainda não encontrados.

Importante é que entendamos que as condições em que a evolução humana se deu permitiram que o homem desenvolvesse sua inteligência para compensar seus desvantajosos atributos físicos. Pedras lascadas para compensar a falta de garras e presas, lanças para compensar a pouca velocidade, estratégias de emboscada para compensar a falta de resistência. A carne nos acompanhou grande parte desse tempo, seja da carcaça abatida por outros animais, seja por nossos próprios ancestrais, mas não porque seus nutrientes fossem essenciais. A carne era muitas vezes a única opção.

O fato de que descendemos de Australopithecus e Homos carnívoros não nos torna carnívoros, nem aponta para o que deva ser nossa alimentação natural, alimentação para a qual fomos desenhados. Se em determinado momento de nossa evolução era determinante que a carne fizesse parte da alimentação, o atual momento aponta exatamente para o contrário.

Novas etapas de desenvolvimento levaram ao domínio da agricultura e então o homem começou a selecionar plantas com melhor composição de nutrientes e de melhor digestibilidade. Se a onivoria é uma vantagem evolutiva quando não se tem controle sobre o meio ambiente, a opção por uma alimentação em níveis mais baixos na cadeia alimentar passa a ser vantagem quando esse controle é conquistado. O homem agricultor tinha a segurança de saber que, se cuidasse de sua plantação, teria alimento para o ano inteiro. O cultivo de vegetais também permitia o sustento da família sem a necessidade de grandes deslocamentos. Permitia a fixação à terra e o sustento de um núcleo populacional maior em menor área. Mas mesmo isso não tornou o homem um animal vegetariano. O agricultor eventualmente empreendia caçadas nas florestas próximas, sendo a carne consumida sempre que encontrada.

A criação de animais (desenvolvida mais ou menos na mesma época em que se iniciou a agricultura) concentrou-se nas terras menos propícias ao cultivo. As populações humanas que se especializaram na criação de animais eram geralmente nômades e precisavam estar em constantes deslocamentos, em busca de novos pastos. Por isso não podiam subsistir com grande número de indivíduos. As populações que optaram pela agricultura fixaram-se à terra, podiam concentrar maior número de indivíduos e baseavam sua alimentação nos vegetais, não sendo porém vegetarianos.

Podemos dizer que a maior parte de sua história, as populações humanas subsistiram com dietas à base de vegetais, com o eventual acréscimo de.algum componente de origem animal. Essa ainda é a alimentação predominante dos seres humanos nos dias de hoje, quando consideramos que a maior parte dos seres humanos não tem acesso a produtos de origem animal. Esse "quase-vegetarianismo-involuntário", no entanto, não prova que o homem seja um animal vegetariano por natureza, e nem que, por outro lado, a desnutrição dessas populações possa ser atribuída a uma inferioridade da alimentação à base de vegetais.

Se a carnivoria foi determinante para a sobrevivência do homem em determinadas etapas de sua evolução, hoje ela se apresenta como uma desvantagem evolutiva (a carne está associada à maior incidência de doenças e a ocupação menos sustentável da terra). Também os vegetarianos não devem buscar na evolução do homem elementos para defender seu ponto de vista, o vegetarianismo é perfeitamente defensável sem a necessidade de uso dessa retórica.

Do sangue, da assepsia, e da construção simbólica em torno da mercadoria-carne

Do sangue, da assepsia, e da construção simbólica em torno da mercadoria-carne

Giulia Bauab Levai

Também disponível em http://migre.me/MZa1

O presente artigo surgiu na necessidade de se fazer um trabalho final em uma disciplina de Antropologia ministrada no curso de ciências sociais da Universidade Estadual de Campinas, onde a turma deveria se organizar em trios e realizar um exercício de observação e elaboração de relato etnográfico, com uso de autores debatidos no decorrer do semestre; a respeito de qualquer questão que envolvesse um local e um grupo de pessoas ligadas a um tema, na qual não se tinha necessidade de nada exótico, uma vez que o espaço mais simples e cotidiano pode render observações interessantes, se pensado em seus pormenores.
Por algumas semanas permaneci sem uma idéia plausível, até assistir ao filme Câmera Olho. Digo que nele uma cena me surpreendeu; ao mostrar todo o processo de “ganho” da carne numa câmera acelerada, de trás pra frente, a partir da cena onde uma mulher trocava umas moedas por um pedaço de carne até o momento em que a vaca aparecia viva. O processo em si, embora visto por intermédio de uma tela inúmeras vezes, ainda ter despertado o famigerado asco misturado com angústia, mais que isto, o movimento da câmera que revertia as ações ganhou minha atenção. Eis o tema do trabalho delimitado: tinha me proposto então, a realizar um exercício de observação (tal qual aquele que se faz antes de adentrar num trabalho de campo) nos açougues de Campinas. Lembro ter partilhado a idéia com alguns colegas, a fim de fechar um grupo que não fosse fechado à proposta; a princípio recorri aos vegetarianos da sala, mas acabei agregando duas colegas que acolheram à idéia com aquilo que chamam de “mente aberta”.

Partíamos da idéia de fazer, então, a observação de locais que reúnem as práticas da venda e compra de carne - tais como supermercados e açougues – e, a partir da relação de consumo entre animais humanos e não-humanos, pensar a questão da elipse da conexão entre animal e carne - o rito de passagem - na ótica antropológica.

Dessa forma, a proposta trouxe idéias como traçar a ponte humano-animal-carne e a significação cultural dos objetos nos locais observados, numa reflexão sobre o que permite/valida o consumo de animais para fins alimentícios. Conforme os estudos e os autores que discorrem sobre o conceito de cultura foram assumindo um caráter diferenciado que se adequaram ao presente exercício de observação, este tomou por referencial teórico Marshall Sahlins, e a tese de mestrado de Juliana Vegueiro Dias, O Rigor da Morte: a Construção Simbólica do “Animal de Açougue” na Produção Industrial Brasileira. Estávamos ali com excelentes fontes, às quais recomendo enfaticamente. Faço aqui um parêntese, para dizer que revisando o trabalho a fim de estruturá-lo como artigo, reverti - na parte que segue, da descrição física da disposição da venda de carnes - os verbos no presente para o passado, a fim de relatar as observações que foram feitas no final de 2009. Lamento dizer que estas não se tratam de práticas que se limitam ao passado.

Começava então com a referência a Sahlins, que, por exemplo, analisando a sociedade americana em relação às suas preferências de comida e quanto aos tabus que essa sociedade sustenta, coloca: “[...] o ponto principal não é somente de interesse do consumo; a relação produtiva da sociedade americana com seu próprio meio ambiente e com o mundo é estabelecida por avaliações específicas de comestibilidade e não-comestibilidade [...][1]

A intenção aqui era a de lançar um olhar mais minucioso e atento sobre a peculiaridade do ato pelo qual animais humanos (vivos) consumem fragmentos de outros animais (mortos). Animais humanos: membros da espécie primata bípede, Homo sapiens. Outros animais: vacas, porcos, galinhas e peixes, sendo os dois primeiros mamíferos quadrúpedes, o terceiro bípede e o último, detentor de nadadeiras e brânquias. Todos são reunidos no reino Animalia. No entanto, nas últimas três semanas freqüentamos ambientes de consumo de itens cárneos, nos quais toda e qualquer referência à categoria animal parecia ser de fato, esquecida e posta de lado.

Nas observações feitas em campo, localizamos a “sessão de Carnes e aves” ocupando o canto esquerdo dos fundos do supermercado. O odor era anteriormente notado. Uma espécie de geladeira horizontal se encontrava no corredor, contendo músculos, articulações e órgãos tanto internos quanto externos de vacas, porcos e galinhas, eram dispostos em bandejas de isopor, revestidas por um plástico. A outra prateleira refrigerada era relativamente setorizada, distribuindo carnes vermelhas, brancas e miúdos, em trechos diferentes. Os corações de galinhas eram vendidos aos montes, em cima de uma poça de sangue, numa única embalagem.

Algumas carnes são embaladas num outro tipo de embalagem, à vácuo, de forma a evitar o escoamento do sangue, que encontramos em algumas bandejas. Ao lado das prateleiras, um rolo de embalagens plásticas ficava à disposição do cliente, caso este queira “reembalar” a embalagem. A noção de assepsia era forte, havia um certificado da vigilância sanitária ao lado do balcão, os funcionários de uniforme, touca e botas brancas.

Seguindo a diante, tínhamos um balcão onde os funcionários amolavam facas e davam pancadas surdas com a machadinha. Ali eram expostos fígados pendurados, perfurados por ganchos; outros músculos e tripas eram postos em bacias brancas, ao lado, a pele de porco também pendurada. O ambiente reunia vários elementos típicos da esfera estereotipada de construção da masculinidade na simbologia ocidental, das facas, do contanto direto com o sangue, do “sangue-frio”, enfim, de toda a chamada virilidade presente na categoria meat-eater / hunter[2].

Saindo da sessão de carnes e aves, logo se via, no lado oposto, uma vasta quantia de itens incrivelmente coloridos e mais atraentes que o normal. Frutas, verduras e legumes. No caminho, uma sessão nomeada “frios e embutidos”, onde mortadelas e presuntos eram pendurados no alto; nas prateleiras geladas, encontravam-se lingüiça, salsicha, azeitonas, maionese e comidas prontas. No mesmo ambiente, eram expostas carne-de-sol e bacon. Na frente dessa sessão, estava a de “Peixes”, curiosamente separada das “Carnes e aves”, como outra categoria de alimento. Ali, o mau-cheiro também é característico, as carnes de peixe pareciam ser mais congeladas que as outras, e se encontravam todas num fundo refrigerador[3].


Dos vestígios de alguma vida nos balcões assépticos, nas embalagens a
vácuo e no avental branco:

Pois parece, de fato, que toda a assepsia procura garantir ao consumidor que o objeto de consumo se mostre uma mercadoria comestível, sem qualquer outro destino prévio. A categoria que reúne os elementos que remetem ao animal enquanto ser outrora vivo é apagada do ambiente. A carne é consumida fora do contexto de tudo aquilo que indica a presença de um corpo, é retalhada em pedaços e formas neutras, quando não enlatada nos chamados embutidos. O sangue é evitado a todo custo, conforme aparecem as embalagens a vácuo e o cenário branco; a temperatura quente e viva da carne é revertida em itens refrigerados e congelados.

Os artefatos parecem circular, em grau máximo de afastamento do corpo e da vida dos animais. Na produção industrial se delineia, assim, a carne como um produto surgido ex nihilo – autônomo, independente, característico do “mundo das mercadorias” (DIAS: 2009, K.Marx, (1867) 1987). É possível perceber o consumo de carne enquanto algo possibilitado pela via da comodidade, seja pela disponibilidade no mercado, pela idéia de higienização do ambiente (da vigilância fiscal), ou mesmo pela simbologia envolvida na aparência do produto. Fatores que não deixam de ser comuns aos que influenciaram a transferência dos açougues comerciais para dentro dos supermercados.

Olhando mais atentamente às mercadorias acima descritas, percebíamos o sangue concentrado nas dobras da embalagem justa, as manchas de sangue no chão branco, o avental branco-amarelado e o mau-cheiro instalado a dois corredores de distância. Ainda, podia-se refletir sobre o mal-estar gerado em torno das semelhanças das partes do corpo animal (dispostas a venda) com o corpo humano dos próprios consumidores. Partes como língua, estômago, pé, entre outras, são algumas as quais a conexão perdida na elipse se dá mais espontaneamente, sendo elas
menos procuradas e consumidas, consideradas “comidas exóticas” pelos próprios funcionários do açougue.

Pensando a trajetória que antecede a mercadoria nas prateleiras, podemos citar a linha de (des)montagem trabalhada por Dias, que caracteriza o abate industrial de animais e não apenas introduz a alienação do trabalho humano, mas, como seu próprio nome indica, ao fragmentar o corpo animal em partes – a partir de que o todo é irreconhecível e irrecuperável -, materializa a alienação neste próprio corpo. Ou seja, em analogia ao argumento de K.Marx [(1867) 1987] em relação ao trabalho humano, o corpo animal também se torna um “hieróglifo social”.

“Tais disposições são etapas fundamentais na transformação simbólica do animal em carne. Retirar todo o sangue do animal, esvaziar de vida o corpo que antes se movia por conta própria, proporciona um distanciamento da idéia do animal vivo, aproximando a matéria inerte de um objeto artificialmente produzido. Trata-se, assim, de um processo de descaracterização progressiva do animal durante sua transformação em carne, como notou N.Vialles (1987), através da retirada das patas, da cabeça, pele e vísceras.”[4]

Temos, novamente, a dissociação entre o animal e o produto industrial classificado na categoria carne. Nas argumentações de DIAS (2009): oculta a morte, imediatizado o consumo, neutralizada a corruptabilidade da carne, esta se mostra cada vez mais como um produto como outro qualquer, produzido pela mão humana, do que com um produto de primeira natureza. A partir do que foi observado, o consumidor tem toda a indiferença necessária para eliminar quaisquer conexões entre animais e “peças”.

“Paralelamente a esse movimento de especialização e fragmentação da produção, Gustavus Franklin Swift, dono da fábrica que leva seu nome, desenvolveu uma técnica que efetivamente revolucionou o mercado de carnes: a carcaça, cortada em inúmeros pedaços, era agora apresentada ao consumidor como peças de carne, o que permitiu significativa elevação dos preços: “a melhor forma de atingir esse objetivo era cortar a carne esteticamente em pedaços, da forma mais atraente possível e expô-los pelo menor preço (W.Cronon, 1991: 237).”[5]

Apontado pela autora, este é o passo decisivo para a cisão entre a carne, enquanto produto industrial, e o animal, em sua integridade de corpo vivo. É demonstrada a transformação do animal em mercadoria comestível através de uma elipse lógica que mascara a passagem do ser vivo ao corpo morto, que segue inúmeras estratégias, as quais velam a forma real do corpo animal, na desenvoltura de um “mercado de pedaços” que suprime completamente a relação entre o fragmento e a totalidade de seu corpo. Existe aí toda uma lógica de produção simbólica em torno da mercadoria:

“De fato, como argumentou W.Cronon, o resultado mais importante da produção industrial de carne – mais do que a carne em si – é o esquecimento, este que faz o animal morrer duas vezes: uma primeira vez nas plataformas de matança e uma segunda, no pensamento dos consumidores.”[6]

Tal como Marshall Sahlins constata, o consumo de carne só poderia dar-se mediante à separação entre aquilo que se come e o que é determinado por uma interação comum entre homens e animais; Baudrillard coloca que da mesma maneira que a linguagem, o consumo é uma troca de significados onde a funcionalidade dos bens ocorre depois, se auto-ajustando.[7]

Bom, nesta conclusão apressada acabava o trabalho. Assim que impresso, foi apresentado em sala. Os demais colegas discorriam sobre seus temas, tais quais as visitas a espaços públicos frequentados por um determinado tipo de pessoas, às peculiares visitas a igrejas evangélicas neopentecostais, a lojas e shoppings, entre outros. Não pude deixar de notar expressões que iam do receio, à surpresa, ao nojo, ao quase-interesse e à aversão. Espero ter despertado um mínimo de incômodo naqueles que são agentes destas práticas, e com esse incômodo, um mínimo de reflexão, por que tudo aquilo que fazemos, por mais pessoal que pareça, não deixa de ser, sempre, um ato político; e como a antropologia estruturalista nos ensina, os atos são atos dotados de significação simbólica, e nada é mera funcionalidade.


Bibliografia

DIAS, Juliana Vergueiro. O Rigor da Morte: a construção Simbólica do “Animal de Açougue” na Produção Industrial Brasileira. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia Social do IFCH/UNICAMP, Fev. 2009

SAHLINS, Marshal. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro. Zahar Editores S.A., 1979

Notas

[1] SAHLINS, Marshal. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro. Zahar Editores S.A., 1979. P. 190

[2] Termos da literatura inglesa e norte-americana. O primeiro, procura designar a categoria aqueles que têm uma “cultura” da presença de carne reforçada na dieta onívora; o segundo, termo para caçador.

[3] As informações e impressões colhidas em campo, talvez pela escolha do ambiente deste, de certa forma, acabaram sendo bastante homogêneas nos dois supermercados, com alguma diferenciação nos açougues também visitados.

[4] DIAS, Juliana Vergueiro. O Rigor da Morte: a construção Simbólica do “Animal de Açougue” na Produção Industrial Brasileira. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia Social do IFCH/UNICAMP, Fev. 2009. p. 54

[5] DIAS: 2009, Op. Cit. p. 28
[6] Idem.

[7] SAHLINS: 1979, Op. Cit. p. 197


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Giulia Bauab Levai é graduanda em ciências sociais, Universidade Estadual de Campinas. E-mail: giulialevai@hotmail.com

COISAS QUE POSSUEM MENTE

COISAS QUE POSSUEM MENTE

Luciano Carlos Cunha

Você já se perguntou o que faz com que alguém seja vendido?

É claro. Todos nós vivemos num mundo onde estamos rodeados o tempo todo por coisas que são vendidas. As coisas vendidas são chamadas mercadorias. Nascemos e vivemos tão acostumados com isso que talvez nunca tenhamos parado para pensar para que serve o conceito de mercadoria.

Bom. Para começar, uma mercadoria é um item de propriedade, e como tal, ela tem um dono, um proprietário. Mas, vamos lembrar de onde iniciamos a questão: "o que faz com que alguém seja vendido?". Uma mercadoria só é vendida por um preço, um valor. E uma mercadoria só é mercadoria por ter um valor que está fora dela. Os outros dão esse valor. Dependendo do quanto a mercadoria favoreça aos interesses do seu proprietário, ela será mais ou menos valorizada. Por definição, um item de propriedade é algo que só tem valor instrumental, condicional, extrínseco. É por isso também que uma mercadoria é chamada uma coisa. Compreendemos bem quando dizemos isso de um relógio ou de uma laranja. Nem um relógio nem uma laranja conseguem ver valor em sua própria existência, porque falta-lhes uma mente. Assim, os donos de relógios e laranjas podem fazer o que bem entenderem com seus itens de propriedade (vender, dar, trocar e até mesmo destruir), pois esses itens não podem sofrer um mal1.

Até aí parece tudo muito simples. Mas, a coisa fica intrigante quando perguntamos porque é que alguns seres que claramente possuem uma mente são vendidos. Se são vendidos, é porque são considerados coisas - o comprador tem o direito de propriedade sobre a coisa, e pode fazer com ela o que bem entender. Aqueles seres vivos que separam-se de sua fonte de provimento ao nascerem precisam da mente para moverem-se com segurança no ambiente2. É por isso que os chamamos animais, pois são animados (dotados de movimento por ação própria - diferentemente por exemplo, de um cata-ventos, que só pode mover-se por forças externas). E é claro, seres humanos também estão incluídos nessa categoria de seres animados.

A nossa busca está cada vez mais intrigante porque, claramente vemos que em nossa sociedade, alguns animais são vendidos e com relação a outros, achamos repugnante a idéia de vendê-los. Se quisermos sustentar firmemente nossa posição, para não sermos acusados de irracionalidade, precisamos demonstrar alguma diferença que exista entre os animais que podem ser vendidos e os que não podem. Uma diferença que diga que alguns animais devem ser agrupados junto com relógios e laranjas e que outros animais são tão diferentes dos primeiros que devem ser colocados em um grupo separado.

Podemos iniciar nossa análise com relação aos seres humanos. Há algum tempo atrás (e não faz muito tempo), humanos de pele negra eram considerados itens de propriedade dos humanos de pele branca. Também as mulheres, já foram consideradas itens de propriedade dos homens. Hoje em dia, achamos repugnante a idéia de que um ser humano possa ser vendido. A noção de que cada um de nós possui uma existência psicológica (e não meramente biológica como uma laranja, por exemplo) faz nos enxergarmos como possuindo o direito de não sermos utilizados como se fôssemos uma mercadoria, uma fonte renovável, um modelo de testes, como se só tivéssemos valor enquanto servíssemos aos interesses dos outros, enfim, como se fôssemos meros meios para fins de outros3. É por esse motivo que consideramos a escravidão como algo repugnante: diferentemente de laranjas ou relógios, nos importamos com o que acontece conosco, e podemos ser atingidos maleficamente por alguma ação ou omissão de terceiros. Por possuirmos um bem-próprio e nos importarmos com o que acontece conosco, nosso valor é inerente4, e não instrumental. Sentimos que nossa vida, integridade física e liberdade de movimento não têm preço. Elas não podem ser compradas.

Tratar um indivíduo que possui uma mente como se fosse uma mercadoria é rebaixá-lo ao estatuto de coisa, é mostrar desrespeito pelos seu valor inerente e seus interesses. Quando se trata de seres humanos, nós concordamos prontamente com todos esses princípios. Mas, se somos realmente racionais, precisamos então explicar porque deveria ser diferente com relação a membros de outras espécies. Em suma, por que respeitar um interesse de não ser usado como uma coisa, de não ser escravizado, em um ser de nossa espécie, e não no de outra? O que nos torna tão especiais?

Alguns dizem: é porque humanos são de nossa espécie. Mas isso é como dizer que "humanos são humanos", e isso já sabemos. Queremos saber o que torna todos os humanos tão especiais. Muitos apontam a capacidade para a razão plena. Mas assim estariam excluídos nossos bebês, as crianças muito pequenas, os humanos com graves lesões cerebrais, e os idosos senis. Além disso, muitos animais não-humanos possuem níveis de raciocínio muito acima do deles. Idosos senis podem já ter tido a razão desenvolvida um dia e bebês saudáveis podem ainda vir a desenvolvê-la, mas certos humanos passarão a vida inteira no mesmo estado (de não ter a posse plena da razão mas poder desfrutar de sua vida prazerosamente) e nem por isso os utilizamos como se fossem nossos recursos. Resumindo, não há como traçar uma linha divisória com base em capacidades cognitivas, que coloque todos os humanos acima da linha e todos os não-humanos abaixo5.

As tentativas do parágrafo anterior de apontar uma diferença entre humanos e não-humanos não foram bem-sucedidas porque tiravam uma conclusão que não tinha a ver com o assunto das premissas. As premissas diziam respeito a alguém por esse alguém ter o interesse em não ser usado como se fosse uma coisa, e a capacidade para a razão plena nada tem a ver com isso. Para sofrer um mal, basta ser senciente (possuir a capacidade de sofrer/ desfrutar da vida). Nisso, nos igualamos aos outros animais, pois somos dotados de mente. Se não conseguimos apontar uma diferença moralmente relevante entre humanos e não-humanos que justifique a diferença no tratamento, é sinal de que nós, que nos auto-proclamamos racionais, estamos embasados num preconceito irracional, de aparências: o especismo6, (assim como o racismo e o sexismo). Se não há mérito ou demérito por alguém ter nascido com este ou aquele formato de corpo (raça, sexo ou espécie), pois, não resulta de investimento pessoal7 (qualquer um de nós poderia ter nascido com rabo, patas e bico), como usar essas características para justificar usar o outro como se fosse uma coisa? Dessa forma, se somos racionais, precisamos estender aos não-humanos o mesmo direito moral básico8 de não ser usado como mero meio para fins de outros (por exemplo, como um item de propriedade), seja para qual fim for: alimentação, experimentos, vestimenta, entretenimento. E não importa se essas práticas são feitas sem dor ou não, com morte ou não: todas elas violam o princípio básico de que seres com uma mente não são coisas.

Ainda há outra questão intrigante. Algumas pessoas defendem que é errado escravizar, torturar, matar, vender seres humanos e certos seres não-humanos (como cachorros ou gatos), mas não vêem nada de errado em fazer isso com galinhas, bois, vacas, porcos, etc. Essa diferenciação é ainda mais difícil de entender, e não pode ser explicada a não ser por um outro preconceito semelhante ao primeiro tipo de especismo (o elitista, que coloca os seres humanos como uma elite): o especismo eletivo9 (onde se escolhe uma espécie para respeitar enquanto se continua a fazer uso de todas as outras). Isso só pode ser explicado através de uma preferência sentimental que alguns tem por certos formatos de corpo. Não haveria problema algum com essa preferência se as pessoas não pensassem que o respeito que elas devem se mede pela quantidade de amor que elas sentem. Amar é opção, respeitar é dever10. E o respeito depende apenas das características do paciente da ação (se este pode ou não sofrer um mal), e não de sensações subjetivas na mente do agente (porque o paciente pode continuar a sofrer o mal, quer o amemos, quer o odiemos).

Assim sendo, a única posição coerente, com relação ao que estávamos investigando sobre o conceito de propriedade é: separarmos de um lado, as coisas (sem mente) que podem ser itens de propriedade e de outro, os indivíduos (que passam a ter o direito de não serem usados). Com isso, necessitamos da abolição11 do uso de animais (tanto humanos quanto não humanos) enquanto itens de propriedade de seres humanos, não meramente sua regulamentação (pois nenhum defensor sério dos direitos humanos defende a regulamentação do estupro), simplesmente porque regulamentar a escravidão é torná-la mais forte e mais bem-vista aos olhos do público.

Notas

1 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000, capítulo 3.

2 Sobre essa definição de animal, ver Arthur SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo, Unesp, 2005, p. 214-215.

3 Cf. Tom REGAN. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 85.

4 Id, p. 84.

5 Cf. Peter SINGER. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, p. 57.

6 Cf. Richard D. RYDER. Speciesism. In: ________. Victims of Science: the use of animals inresearch [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 5.

7 Cf. FELIPE, Sônia T. . Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, 2006, p. 219.

8 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000, p. 92-102.

9 Os termos especismo elitista e especismo eletivo são utilizados pela filósofa Sônia T. FELIPE. Ver entrevista em http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=66:
filosofacritica&catid=84:soniatfelipe&Itemid=27

10 Agradeço a sugestão dessa frase a Maurício Varallo.

11 Cf. Tom REGAN. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 77.

Referências

FELIPE, Sônia T. . Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, p. 207-230, 2006.

FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000.

REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 77-88.

RYDER, Richard D. Speciesism. In: ________. Victms of Science: the use of animals in research [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 1-14

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo, Unesp, 2005

SINGER, Peter. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, pp 57-65.


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Luciano Carlos Cunha - luciano@pensataanimal.net

Mestre em Ética pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciado em Educação Artística com habilitação em música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e colaborador da revista Pensata Animal.